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Suicídio na era da técnica: aproximações fenomenológico-existenciais

A temática do suicídio ganhou dimensão de interesse global no âmbito do Plano de Ação Mundial de Saúde 2013–2030, em razão do aumento de casos observados em diversas regiões. Segundo a Organização Mundial de Saúde, estima-se que cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio anualmente, o que equivale, em média, a um óbito a cada 40 segundos (WHO, 2019). Diante desse cenário, políticas públicas e estratégias de saúde coletiva têm enfatizado a vigilância epidemiológica, a identificação de fatores de risco (biológicos, psicológicos, sociais e econômicos) e a organização de serviços e campanhas de prevenção (por exemplo, campanhas de conscientização e núcleos especializados de atendimento) — medidas fundamentais para reduzir a mortalidade e intervir em populações vulneráveis.

No plano individual, a psiquiatria destaca a presença de transtornos mentais (transtornos do humor, uso de substâncias, esquizofrenia, transtornos de personalidade) como importantes fatores associados ao risco suicida; dessa perspectiva, o ato suicida costuma ser compreendido como expressão de desrazão ou de sintomatologia clínica. Contudo, a perspectiva fenomenológico-existencial propõe uma aproximação complementar: ao afastar-se de explicações exclusivamente generalizantes, procura entender o suicídio como um fenômeno existencial situado — isto é, como uma decisão que se dá em relação direta com a maneira como o indivíduo se percebe e percebe o seu mundo (Feijoo et al., 2023; da Rocha et al., 2012). Assim, interessa investigar o que está em jogo na vida do sujeito naquele horizonte histórico e cultural específico, e não apenas enquadrar o evento como produto de uma patologia diagnosticável.

Essa opção hermenêutica remete à necessidade de apreender os sentidos epocais que configuram o modo de existir contemporâneo. A chamada “era da técnica”, analisada por Heidegger, caracteriza-se pela hegemonia de uma razão ôntica e instrumental que tende a tratar o humano como ente dado e manipulável. Essa conformação histórica promove formas específicas de sentido — consumismo, produtividade, instrumentalização das relações e esquecimento do questionamento ontológico — que influenciam modos de estar no mundo e, potencialmente, contribuem para experiências de vazio, niilismo e perda de sentido. Pensar o suicídio em nosso tempo implica, portanto, reconhecer como tais determinações epocais aparecem nos modos de ser e nas motivações que atravessam a decisão/ou ideação de tirar a própria vida.

Cada tentativa de suicídio revela traços do mundo constituinte em que ocorreu; por isso, o recorte fenomenológico privilegia a descrição da experiência vivida — suas tonalidades afetivas (angústia, desespero, tédio), as fantasias e significados atribuídos à morte (controle, reencontro, autopunição, vingança) e a história relacional do sujeito (perdas, lutos, fragilidades de vínculos). Autores empíricos e teóricos mostram que tanto fantasias suicidas quanto pequenos atos autolesivos podem integrar um continuum de sofrimento em que a morte surge como alternativa para cessar a dor ou preencher um vazio existencial (Dutra, 2000 apud da Rocha et al., 2012; Cassorla, 2004 apud da Rocha et al., 2012). A cultura e os valores sociais também modulam a interpretação do ato — alguns suicídios são percebidos como heroicos em certos contextos, apontando para a importância dos sentidos culturais na configuração da decisão (Werlang & Botega, 2004 apud da Rocha et al., 2012).

Diante disso, a clínica fenomenológico-existencial implica duas orientações complementares. Em primeiro lugar, não negar a relevância das intervenções coletivas e clínicas — vigilância epidemiológica, tratamento dos transtornos mentais e redes de suporte são imprescindíveis. Em segundo lugar, promover uma escuta que recuse a redução do sujeito a um rótulo diagnóstico e que investigue as condições existenciais e epocais que subsidiaram a tentativa. Tal escuta exige a suspensão de pressupostos (epoché husserliana) e a atenção à singularidade do fenômeno, acolhendo a narrativa, as expressões simbólicas e as tonalidades afetivas que compõem a experiência (Feijoo, 2019; da Rocha et al., 2012).

Clinicamente, isso se traduz em práticas que integram: (a) a contenção e o manejo do risco imediato por meio de protocolos de segurança; (b) a investigação fenomenológica do sentido da tentativa — “o que a morte representava para essa pessoa?”; (c) intervenções que considerem a rede de mediações sociais (família, escola, comunidade) e o papel das condições epocais na produção do sofrimento; e (d) a colocação da responsabilidade profissional em termos que preservem a autonomia do sujeito sem banalizar o risco. A combinação entre medidas objetivas (campo da saúde pública/psiquiatria) e uma clínica centrada na singularidade permite uma resposta mais abrangente ao fenômeno.

Por fim, abordar o suicídio como questão existencial não é relativizar a gravidade do ato nem negar o papel de políticas públicas e serviços clínicos. Trata-se, antes, de ampliar o campo explicativo e terapêutico: compreender o suicídio como intersecção entre fatores biográficos, clínicos, sociais e epocais, abrindo espaço para intervenções que dialoguem com a singularidade do existir e com os sentidos que a pessoa atribui à sua vida e à sua morte.


Referências:

Feijoo, A. M. L. C. D. (2019). Suicídio: uma compreensão sob a ótica da psicologia existencial. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 71(1), 158-173.


Feijoo, A. M. L. C. D., Magliano, F. D. R., Protasio, M. M., Costa, P. V. R. D., & Portavales Silva, V. (2023). Prevenção do suicídio: esquecimento do ser e era da técnica. Psicologia: Ciência e Profissão, 43, e253652.


da Rocha, M. A. S., Boris, G. D. J. B., & Moreira, V. (2012). A Experiência Suicida numa Perspectiva Humanista-Fenomenológica. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 18(1), 69-78.


WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Suicide data and prevention. 2019.

 
 
 

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